O fato de gala para nova noite de magia europeia ainda está na lavandaria, mas na Pedreira já se sente o cheiro de mais um final de dia memorável. Afinal, o anfiteatro do SC Braga prepara-se para receber o clube mais titulado da história da UEFA Champions League, o Real Madrid. Ainda que o encontro desta terça-feira seja o primeiro da história entre os dois emblemas, os dois estão unidos por alguém com nome de realeza: Juan Carlos. Perdão, Juankar.
O rei emérito de Espanha é um conhecido apaixonado pelo nosso país e por cá passou muito do seu tempo, mas neste seu homónimo podemos encontrar o contraste perfeito. Aliás, pode até haver quem não se lembre de que Juankar, alcunha pela qual é hoje conhecido, fez parte da equipa bracarense.
Porquê? Porque em seis anos de ligação aos minhotos, o espanhol não só nunca jogou como nem sequer fez parte do plantel. Melhor ainda: apesar de ter sido efetivamente jogador do SC Braga, Juankar só se estreou na Pedreira... este ano. Já lá vamos.
«Quantos anos tens? Queres jogar no Real Madrid?»
É porventura o momento mais alto da carreira de Juankar e envolve um treinador português. A 3 de outubro de 2010, perante 67 mil espetadores no Santiago Bernabéu, um jovem Juan Carlos, com apenas 20 anos, é chamado por José Mourinho. Estava prestes a acontecer a estreia do canterano madrileno com a equipa principal dos merengues. Um momento que não se esquece.
Minuto 78. Chegou o momento. Juan Carlos rende Ángel Di María e ainda vai a tempo de ver de perto mais um golo de Cristiano Ronaldo. O Real Madrid - Ronaldo, Pepe e Ricardo Carvalho foram titulares - batia o Deportivo, de Zé Castro, por 6-1.
Aqueles 12 minutos foram os únicos que o jovem extremo teve com a camisola madrilena. Mas esta história resume-se facilmente a uma frase: para haver Juan Carlos, teve de haver Mourinho.
Os acontecimentos foram retratados em 2016, em livro, por Jerzy Dudek, antigo guarda-redes polaco e que integrava o plantel do Real Madrid em 2010/11. A história envolve Mourinho e o recém-contratado Pedro León como personagens principais, mas levou a que o ator secundário Juan Carlos tivesse direito a ser promovido a protagonista.
Figura de proa do Getafe, Pedro León tinha chegado a Madrid no verão, a troco de uma verba a rondar os dez milhões de euros. Porém, rapidamente entrou em conflito com o técnico português. «Pensou que era uma super-estrela, mas desde o início que não foi titular. Ficou no banco de suplentes diante do Levante e isso deixou-o magoado. O jogo estava 0-0 e Mourinho pediu-lhe para aquecer, mas em vez de o fazer de forma adequada, limitou-se a ficar junto à bandeirola de canto. Eu estava sentado muito perto de Mourinho e ouvi o que ele disse, furioso: 'olhem para aquela falta de empenho. E depois fica ofendido por não jogar'», contou Dudek na sua autobiografia.
León foi ainda assim a jogo, mas o Real acabou mesmo por empatar sem golos. Mourinho não perdoou: «És pouco profissional. Acreditas que consegues enganar os teus companheiros e a mim. Vi a forma como aqueceste, não podias estar menos empenhado. Mas, ainda assim, coloquei-te em campo. Tiveste duas oportunidades para marcar, mas não estavas em condições. Queres jogar no Real Madrid? Aqui toda a gente tem os seus cinco minutos e tiveste os teus».
Fechou-se a porta de León e abriu-se a janela de Juan Carlos. Em semana europeia, o Real Madrid preparava o encontro com o Auxerre e Mourinho abdicou do reforço para promover o «miúdo». «Pedro León pensava que ia jogar, mas Mourinho chamou-nos ao centro do campo e disse-lhe: 'Sinto muito, mas não estás interessado em representar o Real Madrid. Lamento. Outros dariam a vida por esta camisola, mas tu não'», recordou Dudek.
Depois disto, Mourinho viu Juan Carlos e lançou a célebre pergunta: «'Quantos anos tens? Queres jogar no Real Madrid? Sim? E quando te pedir que aqueças vais fazê-lo? Pois bem, assim vais estar no banco de suplentes na próxima terça-feira'». E assim foi. Juan Carlos esteve no banco frente ao Auxerre, antes de se estrear perante o Deportivo. Ainda veio a ter nova aparição no banco de suplentes, numa derrota caseira frente ao Sporting Gijón, mas aqueles 12 minutos perante o emblema do Riazor foram os únicos com a equipa principal dos blancos.
De Madrid para Braga... só no papel
Depois da época em que conseguiu a estreia no Real Madrid, Juan Carlos apresentou-se como um dos reforços sonantes do SC Braga para 2011/12. Orientado nesse ano por Leonardo Jardim, o conjunto bracarense foi ao país vizinho buscar o extremo da cantera madrilena, mas da capital espanhola trouxe ainda outra promessa: Fran Mérida, um campeão da Europa de sub-17 com passagens por Arsenal e Atlético de Madrid, que vinha de uma temporada com 27 jogos pelos rojiblancos e uma Supertaça Europeia conquistada.
Se Mérida, emprestado pelos colchoneros, ainda realizou oito partidas nessa época, Juan Carlos nem sequer chegou a calçar as chuteiras para pisar o relvado da Pedreira. No papel, o extremo era jogador dos arsenalistas. Na prática, nunca esteve sequer perto de o ser.
Nesta história não há espaço para veni, vidi, vici na relação de Juan Carlos com o SC Braga. Pelo contrário, foi chegar, ver... e partir. O contrato foi assinado e o espanhol era efetivamente jogador do SC Braga, mas a temporada foi feita em Saragoça. Cedido pelos minhotos, Juan Carlos fez três golos em 26 jogos pelo Real Zaragoza e ajudou o clube, que contava com Hélder Postiga, Fernando Meira e Rúben Micael, a manter-se na primeira divisão.
Desempenho bom o suficiente para merecer uma oportunidade em Braga? Talvez, mas essa nunca surgiu. Nos dois anos seguintes, Juan Carlos foi cedido ao Real Betis e continuou a senda de partilhar balneário com jogadores portugueses. Em Sevilha fê-lo com Salvador Agra e Nélson em 2012/13, época em que os verdiblancos ficaram no sétimo lugar. No ano seguinte, o descalabro: última posição e descida ao segundo escalão. Em ambas as campanhas, muita utilização para o jogador do SC Braga, que atuou em 26 jogos em cada uma das épocas.
O Real Betis desceu, mas Juan Carlos tinha o seu espaço no clube e jogava com regularidade. Era desta que podia apresentar-se perante os aficionados bracarenses? Ainda não. De Sevilha seguiu para Granada e colecionou mais dois colegas portugueses, Candeias e Luís Martins, na temporada 2014/15. Voltou a ultrapassar a fasquia dos 20 jogos, mas ainda assim não fez o suficiente para ficar em Portugal. Nesta altura, o contrato que ligava o jogador aos minhotos ia no quarto ano.
Última paragem em Málaga desbloqueou figura histórica arsenalista
Depois de Saragoça, Sevilha e Granada, era tempo de juntar mais uma cidade espanhola. O SC Braga voltou a emprestar Juan Carlos, desta feita ao Málaga. Uma vez mais, um leque vasto de portugueses no plantel: Flávio Ferreira, Fábio Espinho, Duda... e Ricardo Horta.
Por esta altura, parecia demais evidente que o espanhol não entrava nas contas em Braga. Mas Ricardo Horta, por outro lado, era alvo desejado e Juankar, alcunha que adotou ao longo da carreira, teve papel preponderante na mudança do extremo para a cidade dos arcebispos.
Depois de uma primeira temporada em Málaga onde agradou aos responsáveis, o espanhol por lá ficou uma segunda temporada, novamente a título de empréstimo. Em troca, Ricardo Horta fez o caminho inverso. Em 2016/17, Juankar voltou a convencer em Málaga e Horta fez o mesmo em Braga, pelo que a troca se tornou definitiva.
Ao fim de seis anos, o jogador espanhol, que entretanto foi recuando no terreno até se tornar lateral esquerdo, deixou de ser oficialmente jogador dos bracarenses e abriu a porta à entrada no clube de Ricardo Horta. Troca ganha para o SC Braga, que hoje tem no extremo um dos capitães de equipa e uma das maiores figuras da sua história.
Estreia na Pedreira com 12 anos de atraso
Juankar tinha assinado pelo SC Braga no verão de 2011. Esteve seis anos ligado ao clube, mas nunca jogou. Depois da troca em definitivo com Ricardo Horta, ainda ficou ligado ao Málaga por mais três temporadas, antes de se juntar ao Panathinaikos. Na Grécia, leva já quatro épocas consecutivas como jogador importante da equipa.
Esta história já era caricata q.b. quando nos deparámos com o facto de um jogador ter estado seis anos ligado a um clube e nunca ter jogado. Mas o destino quis que esta narrativa fosse pincelada com tons que a tornassem única e ao fim de 12 anos, quando já não tem qualquer ligação ao clube português, Juankar fez a estreia oficial na Pedreira.
O destino intrometeu-se no sorteio do play-off da UEFA Champions League desta temporada e colocou frente a frente o SC Braga e o Panathinaikos. E assim, a 23 de agosto, Juankar pisou pela primeira vez o relvado do anfiteatro bracarense para um encontro oficial. Com 12 anos de atraso em relação ao que podia ter sido... e com uma camisola diferente. Jogou os 90 minutos na asa esquerda da defesa helénica, mas saiu de Braga com um amargo sabor de derrota, agravado por novo desaire na segunda mão e que atirou os gregos para a Liga Europa.
Esta terça-feira, abre-se um livro de histórias entre SC Braga e Real Madrid, que se defrontam pela primeira vez. No relvado escreve-se o primeiro capítulo, mas no prefácio cabem histórias como esta, a do canterano merengue que foi bracarense sem sair de Espanha.